EM DEFESA DOS HERÓIS DO ULTRAMAR E DE UM MUSEU NACIONAL DA GUERRA DO ULTRAMAR

 

Em Portugal temos alguma facilidade em homenagear os mortos, mas muita dificuldade em honrar os vivos. Quando se pretende homenagear, destacar um indivíduo, há sempre alguém que esgrima imediatamente com um qualquer facto menos abonatório da pessoa em causa, não raras vezes até meras suspeitas, e/ou, apresenta-se logo uma, duas ou mais outras pessoas, que esses sim, deveriam ser alvo da dita homenagem.

Honra aos heróis

Está no sangue português e qualquer leitor do maior poeta português de sempre, Camões - talvez apareça já alguém a dizer que não foi...há outros - sabe bem que a palavra “inveja” percorre várias estrofes. Não só, mas é também por este sentimento, a que se acrescenta a influência das ideologias de matriz marxista, que muitos dos heróis na Guerra do Ultramar, combatentes de excepção, mesmo os que foram distinguidos com ordens e medalhas militares da mais elevada precedência, continuam hoje no esquecimento. E muitos ainda vivos o que é mais doloroso de ver, esquecidos.

Esta “mania” portuguesa acaba naturalmente por ter como consequência apoucar não apenas uns mas todos os que serviram e com eles a instituição militar. Tudo quanto seja nivelar por baixo, ou mesmo pela média, acaba neste resultado.

Não é só por esta “maldição” da nossa maneira de ser, mas também a ela se deve a fraca impressão que muitos na sociedade civil têm da Instituição Militar e dos militares. “Mas afinal eles fizeram mesmo o quê na guerra?” É normal ouvir-se, como normal é duvidar-se das capacidades dos nossos militares. Na realidade muitos factos reais não são públicos ou apenas circulam entre uma pequena minoria. Ao contrário, tudo o que tenha sido negativo na guerra, casos que também os houve sem dúvida, esses sim têm repercussão nacional, repetidamente, em tudo o que é espaço publicado e acabam por ser os factos mais conhecidos.

E os actos heróicos? Aqueles que se fossemos americanos, ingleses ou franceses e mesmo espanhóis ou italianos, davam filmes, conferências, livros, nomes de ruas, praças e avenidas, monumentos, exemplos nos livros de história escolares? Sim, também os tivemos no Ultramar! Muitas vezes admiramos heróis estrangeiros de guerras distantes e esquecemos os nossos. Foram e são muitas vezes escondidos como se nos envergonhassem. Mas é ao contrário, devemos é orgulharmo-nos desses nossos compatriotas. E dá-los a conhecer!

Revista Mais Alto, Novembro de 1968. A revista da Força Aérea divulgava regularmente os seus militares condecorados na Guerra do Ultramar.  Aqui, oficiais, sargentos e praças agraciados, dois a título póstumo.

Estou perfeitamente à vontade para o dizer, não estive no antigo Ultramar, não sou parte interessada no assunto. Apenas na medida em que sou português e gostava de ver os nossos heróis identificados e honrados!

É certo que o Exército publicou nos anos 90 do século XX, vários volumes da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) que identificava os militares agraciados com medalhas militares e os respectivos louvores. O Corpo de Tropas Paraquedistas ainda antes, nos anos 80, foi pioneiro e começou a publicar a história das suas unidades, nomeadamente os Batalhões de Caçadores Paraquedistas que combateram no Ultramar e incluíram listagens de militares condecorados (sem os louvores e com algumas lacunas). A Força Aérea e a Marinha desconheço se o fizeram, os Fuzileiros publicaram vários volumes sobre a sua história, incluindo os seus condecorados, embora também sem os louvores respectivos.


Pelo que se vai sabendo, neste momento um autor, Pedro Castanheira, antigo paraquedista militar, depois de anos de investigação, tem pronto a ser publicado um monumental trabalho dedicado aos militares paraquedistas agraciados com medalhas (e prémios) resultantes de acções em campanha. Terão sido, números redondos, 800 boinas verdes agraciados, mais de 250 oficiais, mais de 250 sargentos e mais de 250 praças. Todos vão ser referidos bem assim como os seus louvores. Se tivermos em consideração que serviram no Ultramar cerca de 11.500 paraquedistas, e que vários oficiais e sargentos sobretudo, mas também praças, foram condecorados mais do que uma vez, teremos um valor de pessoal agraciado que não deve ultrapassar os 5% da totalidade dos paraquedistas que combateram. Note-se, no entanto, todos os que serviram em África foram condecorados com a Medalha Comemorativa das Campanhas e/ou a Medalha Comemorativa de Comissões de Serviço Especiais. Outros ainda, consoante os casos, com as: Medalha dos Promovidos por Feitos Distintos em Campanha; Medalha dos Feridos em Campanha.

Estes livros – quer os da CECA/Exército quer os dos Fuzileiros quer o que está para ser publicado do Pedro Castanheira, relativo aos paraquedistas – são documentos imprescindíveis para o estudo destas campanhas, mas pela sua natureza nunca chegarão ao grande público, apenas aos interessados e investigadores, mas podem bem – devem – ser a base, a fonte segura, para o trabalho de reconhecimento e divulgação das acções dos nossos compatriotas na guerra.

Todos os militares sabem que a atribuição de medalhas e louvores é dos temas mais controversos que pode haver no interior da Instituição Militar! A sua atribuição tem a ver com múltiplos factores e não é difícil encontrar quem entenda que fulano devia ter recebido uma distinção e outro que recebeu não a merecia. E há naturalmente casos em que isto será rigorosamente verdade. Mas são uma escassa minoria e não podem apagar a maioria dos que justificaram de pleno direito o reconhecimento recebido. Sem esgotar o assunto e lembrando que os critérios de então eram muito diferentes dos actuais, a atribuição de medalhas no Ultramar foi muito restrita – e por isso mais valor ainda têm! Note-se que nesses tempos, falo agora das tropas paraquedistas como exemplo, as operações de combate sucediam-se durante uns dois anos de comissão. Um paraquedista, por regra (dependendo do teatro de operações), realizava dezenas de operações de combate nesse espaço temporal e muitos, nomeadamente os graduados, oficiais e sargentos dos quadros permanentes e praças readmitidos (que os houve muitos nos paraquedistas), em comissões sucessivas podiam realizar mais de uma centena de operações, é muito difícil hoje quantificar. Esta “carga” operacional era geral mas até mais marcada nos sargentos paraquedistas, muitos dos quais, de furriel a primeiro-sargento eram comandantes de secção (e mesmo de pelotão) em operações e depois, muitos destes, ascenderam a oficiais e alguns novamente foram empenhados nas sub-unidades operacionais. Postas as coisas assim é fácil de ver – por comparação com a actualidade das missões de paz e humanitárias – que as medalhas no Ultramar eram, por regra, difíceis de conseguir. Depois, havia, ontem como hoje, outros aspectos a considerar como por exemplo, quem fez as propostas, havia comandantes mais generosos que outros, uns ligavam mais ao perfil global do combatente e não a uma acção em concreto, e tantos mais factores alguns até bastante subjetivos que influenciavam a decisão. Propostas de condecoração também houve, nos paraquedistas, por exemplo, que chegadas ao escalão superior, eram negadas. Como em tudo na vida, uma dúzia de injustiças não deve, não pode de modo nenhum, desvalorizar as centenas dos que se distinguiram e muitos pagaram isso muito caro, com a morte, ferimentos graves e sequelas para todo o sempre, físicas e psicológicas. Apagar os agraciados da história da Guerra do Ultramar é injusto e pernicioso para a Instituição Militar.  


Meio século depois do regresso dos últimos militares daquilo que foi o Ultramar português, é mais do tempo de, fora da Instituição Militar, se saber quem são os nossos heróis. Sim, fora, porque na realidade dentro dos quartéis, apesar de tudo o que se viveu no pós-25 de Abril de 1974, muitos dos que caíram ao serviço da Pátria continuam a ser lembrados. Monumentos, memoriais, museus, equipamentos diversos que receberam os seus nomes. Mas, mais uma vez, quase sempre dos que morreram, dos que sobreviveram, dos que estão vivos, as coisas já são diferentes.

Em Portugal, a transição para a democracia foi realizada por militares que se revoltaram contra o governo de então, muitos deles combatentes medalhados. Além de questões relacionadas com vencimentos e promoções, o seu objectivo era acabar com a guerra. Logo após o golpe militar, a “revolução” foi controlada sobretudo por comunistas e marxismos vários e alguns antigos desertores tiveram lugar de destaque. Para justificar tudo o que foi feito, a guerra foi demonizada em todos os aspectos. Os traidores e desertores passaram a ser apontados como exemplo, e os heróis apagados, quando não acusados de tudo e mais alguma coisa. Mesmo depois da consolidação da democracia, sobretudo nas Universidades, na comunicação social (e até em meios militares), na bibliografia produzida, manteve-se esta influência que denegriu o papel dos combatentes. Com os anos este clima adverso foi-se esbatendo na sociedade – basta ver os encontros de antigos combatentes – mas mantêm-se activo e com poderosos recursos em muitas instituições. 

Curiosamente, apesar desta atitude da nova elite dominante, algum senso comum sobreviveu. São muitas as localidades em Portugal, hoje, que mantêm na sua toponímia a designação “Heróis do Ultramar”. Cidades, vilas e aldeias lembram e honram através de avenidas, ruas, praças, pracetas, aqueles que combateram no antigo Ultramar português e dentro destes, em especial, os que se distinguiram. Outras há, menos, que mantêm, nomes desses heróis no espaço público. Do mesmo modo muitas localidades têm hoje monumentos que horam os que serviram no antigo Ultramar. Desconheço o seu número, são largas centenas, talvez mesmo mais de um milhar. Aqui, por regra, recordam-se os que caíram ao serviço das Pátria, desde os que cometeram actos de bravura aos que faleceram por acidente, todos morreram porque estavam integrados no esforço de guerra e assim são justamente lembrados. Tudo isto é positivo e deve-se em grande medida ao trabalho da Liga dos Combatentes e de outras Associações de antigos militares que, localmente, vão mantendo esta memória viva.

As Forças Armadas através dos seus canais de informação deveriam divulgar – por exemplo nos aniversários em que determinadas acções decorreram – o que os seus militares fizeram. E com nomes! É isto que se faz em muitos países amigos e aliados, não é nada de extraordinário. É um processo que não se pode ir “apagando” com o tempo, mas pelo contrário, tem de ser relembrado. Aponto, entre outros exemplos, o que os países vencedores da 2.ª Guerra Mundial fazem em relação aos seus heróis. Todos os anos essa memória é renovada com novas estátuas, museus, memoriais, cerimónias, etc. Esse é o caminho e o objectivo terá de ser incutir nos mais novos, orgulho no que os seus avós e bisavós fizeram, combateram por Portugal, não traíram.

Quantos combates relativos à guerra do Ultramar lembram hoje, em cerimónia pública as Forças Armadas? Recordo comemorações de batalhas da Instauração da Nacionalidade, da Restauração, das Invasões Francesas, da Guerra Civil, até do 25 de Abril que em anos recentes teve forte empenhamento dos ramos, mas…e da Guerra do Ultramar?

Museu Nacional da Guerra do Ultramar

A nível dos Ramos das Forças Armadas temos museus militares nos quais, nuns quase nada e em outros um pouco mais, se insere algum espaço dedicado à Guerra do Ultramar. Também a Liga dos Combatentes tem um Museu do Combatente em Lisboa, no Forte do Bom Sucesso, no qual este conflito tem alguma representação.

Uma outra boa iniciativa com a qual me deparei um destes dias, a publicação online, pela Academia Militar, de notas biográficas dos antigos alunos mortos ao serviço da Pátria, nomeadamente, os 47 caídos na Guerra do Ultramar (1961-1975).  Também no Museu Militar de Elvas com a Associação Portuguesa de Veículos Militares Antigos, se tem feito muito pela divulgação de materiais usados nesse conflito e assim lembrar essa vertente da guerra. Outros museus em unidades militares por regra no Exército designados “colecções visitáveis” – pelo país apontam no mesmo sentido.

Há também um designado “Museu da Guerra Colonial” (designação que só por si tem uma carga política, a guerra decorreu sim no Ultramar e é esse o seu nome) numa área industrial de Vila Nova de Famalicão (a 30Km do Porto). Trata-se de uma iniciativa de raiz associativa, com apoio de entidades locais, a sua gestão é responsabilidade de uma “Associação do Museu da Guerra Colonial”. Nunca o visitei, a avaliar pelo site tem peças interessantes, mesmo que algumas só usadas bem depois da Guerra, e está ligado a um projecto pedagógico de uma escola local, do qual desconheço os fundamentos.

Imperial War Museum - Manchester

Bem sabemos as dificuldades que a Instituição Militar atravessa para conseguir manter o que tem nesta área da História e Cultura, mas parece-nos que é mais do que tempo de se dar um salto em frente! E não são as Forças Armadas é o governo, o Ministério da Defesa Nacional e o Ministério da Cultura que deverão abraçar um projecto nacional para lembrar aos vindouros o esforço, o sacrifício de centenas de milhares portugueses.

No mesmo país em que mantemos dois museus nacionais (e já se fala de mais…), pagos pelos nossos impostos dedicados “à resistência anti-fascista”, nos quais – Aljube em Lisboa e em Peniche na sua enorme fortaleza – no essencial se glorificam os comunistas (na altura uma filial da URSS em Portugal), pelo combate que desenvolviam ao Estado Novo, os desertores e até os movimentos que nos combatiam e matavam portugueses em África, parece-me, ser mais do que tempo de acabar com o silêncio envergonhado dos governos sobre a Guerra do Ultramar. 

Não podemos continuar a permitir o apagamento de uma das maiores gestas militares da nossa existência como país. O esforço e os sacrifícios de centenas de milhares de portugueses, assim o exigem. Quantos mais anos passam, maior é essa obrigação!

National Museum of the United States Army, Virginia, USA. 

Os que morreram têm o seu monumento, e muito bem, no Forte do Bom Sucesso. Falta agora em Portugal um grande e moderno Museu Nacional da Guerra do Ultramar. Todos os que ali serviram têm de ser lembrados e devemos destacar os que se distinguiram no conflito.

É uma realidade dos dias de hoje na generalidade dos países aliados e amigos – e mesmo nos adversários! – a construção de novos museus ou a modernização dos existentes. Os exemplos repetem-se com uso de arquitectura arrojada e adaptada à finalidade, o uso das mais modernas tecnologias de informação, mas o objectivo de sempre, honrar os que combateram em defesa da Pátria.

Museu do Desembarque, "Utah Beach", Normandia, França.

Conheço muitos museus militares por essa Europa e na generalidade o que transparece em cada momento histórico – fossem elas na Europa ou nas Colónias – é o militar, quer o anónimo quer o herói, o seu esforço e sacrifício em combate, o seu equipamento e armamento, as suas vitórias e mesmo as derrotas.

Estamos atrasados em relação ao que já devia ter sido feito, as razões são muitas e os culpados disso também, mas agora isso é tudo secundário, avance-se, mais vale tarde do que nunca.

Miguel Silva Machado, 14JUL2025

Sobre esta temática pode ler: 

MUSEUS MILITARES EM LISBOA, GUERRA DO ULTRAMAR E MISSÕES DE PAZ 

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