A INFLUÊNCIA DO “SIMPLES” SOLDADO NA GRANDE POLÍTICA – IFOR/BÓSNIA 1996.
Hoje vou dar palavra a algumas das pessoas que maiores responsabilidades tiveram no plano das decisões e no comando e controlo da missão portuguesa na Bósnia e Herzegovina em 1996. São opiniões de quem conheceu pontualmente o terreno, uns mais do que outros, mas acima de tudo de quem decidiu e teve acesso a muita informação do nível político-militar nos centros de poder nacionais e internacionais, formando opinião sobre o que significou desempenho militar no terreno.
Nestes últimos 25 anos escrevi dezenas de artigos sobre as
missões na Bósnia e Herzegovina, fui co-autor de livros, colaborei em programas
de televisão e radio e fiz palestras sobre este assunto.
Como é natural baseei-me na própria experiência durante os 7
meses que ali permaneci em 1996 e nas visitas subsequentes à Bósnia – em 1997,
2002, 2004, 2012, 2017 e 2018 – no que outros intervenientes disseram, na
leitura quer do que vários militares e civis escreveram, quer de documentos
oficiais a que tive acesso pela natureza das funções que fui desempenhando.
Hoje não sou eu que emito opinião nem relato factos, apenas fiz a selecção
dos excertos que transcrevo. São comunicações oficiais publicadas na revista
Nação e Defesa do Instituto da Defesa Nacional, parte ainda no decurso da
primeira missão IFOR (1.º semestre de 1996) outras mais tarde já com a Bósnia
em “velocidade de cruzeiro”, mas aludindo ao início da participação da NATO nas
operações terrestres na Bósnia e Herzegovina.
Propositadamente não inseri os elogios de ocasião, mesmo que
fossem naturalmente sinceros, não duvido, inscritos nos Livros de Honra das
unidades ou até as mensagens que muitos titulares de cargos políticos e
oficiais generais estrangeiros endereçaram aos batalhões portugueses. Tentei
seleccionar os aspectos referidos que estão fundamentados.
São transcrições sem qualquer comentário, só responsabilizam
quem as fez, esta é a sua visão do que se passou.
“Dei palavra” às seguintes personalidades:
António Guterres, Primeiro-Ministro em 1995/1996
António Vitorino, Ministro da Defesa Nacional em 1995/1996
Javier Solana, Secretário-Geral da NATO em 1995/1996
João Mira Gomes, diplomata no Ministério dos Negócios Estrangeiros em 1996.
Octávio de
Cerqueira Rocha,
Chefe do Estado-Maior do Exército em 1995/1996
Sabemos hoje os resultados da missão da comunidade
internacional, o país regressa lentamente à normalidade, as suas populações têm
escolhido com regularidade os seus representantes. Não estando na situação
ideal e mesmo que algumas expectativas teimem em não se concretizar, o pior pesadelo,
a guerra, essa não regressou à Bósnia, e uma pequena missão militar e policial
internacional continua no terreno. Foi sem dúvida das missões de paz - ou mesmo "a" missão de paz - em que Portugal participou que melhores resultados para as populações locais foram alcançados.
Talvez este artigo ajude a responder à pergunta de sempre
nestas circunstâncias, não no plano local mas nacional, e também ao que
muitos que lá estiveram com as “botas no chão” questionam:
Porque estivemos na Bósnia e Herzegovina? O que beneficiou
Portugal?
António Guterres,
Primeiro-Ministro em 1995/1996
“Política Geral do Governo”, António Guterres, intervenção do então Primeiro-Ministro no Curso
de Defesa Nacional 96, proferida no IDN em 10MAI1996.
Nação e Defesa n.º 79, JUL-SET1996.
«…a evolução recente
revela que às Forças Armadas Portuguesas estarão cometidas no futuro, missões
que considero da maior relevância para a afirmação da politica externa
portuguesa.
Em primeiro lugar, há
que ter consciência que a presença portuguesa na Bósnia, tal como se afirmou, e
a capacidade de termos presença em cenários semelhantes e em operações de
manutenção de paz de natureza idêntica, foi um dos factores mais importantes
para a credibilização da politica externa portuguesa, não apenas no quadro das
instituições de segurança e defesa colectivas, como no quadro de todas as
instituições internacionais e, nomeadamente, da União Europeia. A autoridade de
dizer na União Europeia algumas das coisas que dizemos, decorre de estarmos na
Bósnia ai nível a que estamos e com o empenhamento que estamos. Por isso é
importante que concebamos o desenvolvimento das nossas Forças Armadas no
sentido de aumentar a capacidade de responde a solicitações deste tipo…»
António Vitorino,
Ministro da Defesa Nacional em 1995/1996
“Política de Defesa Nacional”,
António Vitorino. Intervenção do então
Ministro da Defesa Nacional, perante os Auditores do Curso de Defesa Nacional
96, no IDN, em 09MAI1996. Nação e
Defesa n.º 79, JUL-SET1996.
«…Deixei
propositadamente para agora a referência à presente operação na
Bósnia-Herzegovina. Não porque considere que o seu lugar é secundário nas
nossas preocupações (justamente o contrário), mas porque ela faz naturalmente
uma ponte entre a acção multilateral da nossa política de defesa, e a sua
vertente interna, nacional.
A relevância da
presença do nosso Batalhão Aero-Transportado nas encostas ingratas do sudeste
da Bósnia ultrapassa largamente a sua contribuição específica no contexto geral
da missão IFOR. Tenho várias vezes recordado que se trata da primeira vez em
quase oitenta anos que as forças portuguesas são deslocadas para um teatro
europeu. Constitui por isso, e em termos de operacionalidade das nossas
próprias Forças Armadas, um corte com o nosso passado recente. Deixámos
finalmente de ser um exército construído e pensado em função do período
colonial que já passou, para passarmos a ser um exército de mentalidade e
estrutura decididamente europeias. Apesar da nossa dimensão e posição
geográfica, estamos a provar que podemos, e sabemos, assumir as nossas
responsabilidades colectivas, quer no plano da capacidade operacional, quer no
plano da especial capacidade de ligação com as populações da
Bósnia-Herzegovina, numa posição de imparcialidade e neutralidade, e de
colaboração com as autoridades civis.
Os riscos que assumimos
ao enviar os nossos soldados para a Bósnia não se limitam nem à eventualidade
de podermos sofrer baixas – como infelizmente já aconteceu – nem aos custos
financeiros da operação. Os riscos vão mais longe. Estamos a por à prova uma
estrutura de comando e controlo que há mais de vinte anos não era confrontada
com situações reais. Estamos a projectar foças para um teatro de histórica,
cultural e geograficamente nos é estranho, e que nada tem a ver com a
experiência que as nossas forças viveram em África. Estamos a utilizar pela
primeira vez unidades combatentes constituídas exclusivamente por voluntários e
contratados. E, por fim, estamos a participar numa operação que à primeira
vista nada parece ter directamente a ver com os interesses nacionais imediatos,
mas cujo impacte na nossa política de defesa e na reestruturação das nossas
Forças Armadas irá fazer-se sentir muito para além dos limites temporais desta
operação.
Cumpre aqui prestar uma homenagem à forma como
a cadeia de comando e os nossos soldados têm sabido assumir esta pesada
responsabilidade e este difícil desafio. E bem assim sublinhar que a
estabilidade do continente europeu é um interesse vital de Portugal. A assunção
das nossas responsabilidades, enquanto parceiro credível da Aliança Atlântica,
é também um interesse vital de Portugal, e é responsabilidade de cada
portuguesa e de cada português pensar Portugal, não confinando às suas
fronteiras mas, sim, em termos da sua projecção na comunidade internacional…
…encontram-se em fase final de elaboração três projectos-lei, importantes, que
visam definir, o estatuto dos militares em missões de cooperação
técnico-militar, o estatuto da representação externa no âmbito da defesa, e o
estatuto dos militares em missões humanitárias e de paz. Esta legislação irá
suprir algumas deficiências hoje existentes, que têm impedido uma correcta e
justa projecção eterna da nossa política de defesa… …Ao IDN deverá caber a importante
tarefa de pensar as estratégias, de avisar as políticas, de preparar as
decisões do Ministério da Defesa, ao mesmo tempo que sensibilizando a sociedade
civil e reforçando a identidade e as consciência nacionais… …No capítulo das
novas missões (gestão de crises, humanitárias, de manutenção da paz), terá de
caber ao IDN o papel relevante de segregar uma cultura e uma doutrina
especificas da aplicação de meios militares portugueses neste tipo de operações…»
Javier Solana, Secretário-Geral da
NATO em 1995/1996
"As Lições da Bósnia", Javier Solana, do então Alto
Representante para a Política Externa de Segurança Comum e Secretário-geral da
UEO, Comunicação apresentada ao Seminário “Portugal e as Operações de Paz da
Bósnia”, no IDN, em 10, 11 e 12 de Março
de 1999. Nação e Defesa Nº 92, Inverno 2000, número temático "Portugal
e as Operações de Paz na Bósnia".
«…O Instituto da Defesa
Nacional escolheu uma altura apropriada para explorar as lições da Bósnia. Com
efeito, as missões de manutenção da paz e de gestão de crises constituem hoje
uma parte importante da adaptação da Aliança aos actuais requisitos da segurança…
…as lições da Bósnia são cada vez mais pertinentes, seja na actual agenda da
Aliança, seja na forma como pensamos e preparamos o futuro da manutenção da paz
e da gestão de crises…
...Temos de dotar as
nossas forças, os nossos Quartéis-generais e a nossa logística, com capacidade
para rapidamente se posicionarem numa área em crise, e para aí permanecerem durante
longos períodos de tempo. Hoje em dia as forças da NATO são mais ligeiras, mais
flexíveis, dotadas de maior mobilidade e mais versáteis do que anteriormente.
…A Bósnia demonstrou
com clareza a eficácia das grandes coligações na obtenção de resultados. A
força multinacional IFOR foi capaz de se posicionar rápida e eficientemente,
porque tanto os países Aliados como os Parceiros estavam habituados a trabalhar
em conjunto nos Programas da Parceria para a Paz. E a contribuição dos países
não-NATO é simultaneamente importante e desejável…
…Na Bósnia, estamos a
trabalhar intimamente com todos os grandes órgãos e organizações internacionais
e não-governamentais – o Gabinete do Alto-Representante, as NU, a OSCE, a UE, a
UEO. A palavra-chave aqui é sinergia, não hierarquia. E posso dizer-vos,
apoiado na experiência colhida nas minhas muitas viagens à Bósnia, que
semelhante reforço mútuo contribui para o esforço comum de construção da paz…
…a acção resoluta pode
obter resultados. Antes de a NATO entrar em acção na Bósnia, especialistas da
mais variada proveniência alertaram-nos para os riscos que íamos correr.
Avisaram que as campanhas de ataque aéreo não iriam encorajar as partes a
negociar, mas a verdade é que a campanha aérea as levou em linha recta até
Dayton; avisaram que a acção militar da NATO provocaria uma ruptura definitiva nas
relações com a Rússia, mas as forças russas integram a SFOR e o relacionamento
NATO-Rússia nunca foi tão forte como hoje. Os especialistas avisaram que a
Implementation Force sofreria baixas inaceitáveis – mas nem um único soldado
foi morto em virtude de acção hostil. E avisaram que a força militar seria
compelida a permanecer na Bósnia para sempre – mas a Stabilization Force tem
hoje metade dos efectivos da Implementation Force; e mais reduções estão
previstas, na medida em que a situação de segurança continuar a melhorar…
…Enfrentamos
actualmente outro conflito no Kosovo. A crise do Kosovo é muito diferente da da
Bósnia. Todavia, algumas das lições da Bósnia são inteiramente aplicáveis.
Primeiro, a comunidade internacional compreende que à força militar cabe um
importante papel no apoio à diplomacia e na prevenção de crises humanitárias…»
António Vitorino, Ministro da Defesa
Nacional em 1995/1996
“Nos Cinquenta Anos da NATO: algumas Reflexões sobre a Operação de Paz
na Bósnia-Herzegovina”,
intervenção de António Vitorino
então deputado ao Parlamento Europeu, no Seminário “Portugal e as Operações de
Paz da Bósnia”, IDN em 10, 11 e 12 de
Março de 1999. Publicado na revista Nação e Defesa n.º 92, Inverno 2000.
«…A que acresceu não apenas a vontade e empenhamento das nossas Forças Armadas, assumida a todos os níveis da sua hierarquia, mas também a consciência profissional dos nossos militares de que, perante estes novos desafios, se impunha tomar nas nossas próprias mãos a responsabilidade maior de adaptar a estrutura organizativa do nosso dispositivo militar às regras de empenhamento nestas missões conjuntas de tipo novo, que marcam de forma profunda o ambiente internacional em que se desenvolvem as funções de defesa e de segurança. Creio sinceramente que o profissionalismo e o elevado brio com que os militares portugueses assumiram este desafio e desempenharam a missão demonstra, acima de tudo, a grande maturidade das nossas Forças Armadas e representa um assinalável ponto de viragem na sua preparação, por forma a continuarem a dar um contributo inestimável à sustentação da posição de Portugal no Mundo.
Neste capítulo é minha
convicção pessoal, quer fruto do contacto directo e intenso que pude ter com os
militares envolvidos na operação, quer fruto dos inquéritos que entidades
externas ao Governo e às Forças Armadas levaram a cabo junto dos protagonistas
directos da missão, que os militares portugueses deram provas de grandes
qualidades não apenas profissionais mas também – e sobretudo – humanas perante
a situação de enorme melindre e elevado potencial de conflito com que se
defrontaram. Na realidade, a dimensão humanitária e de salvaguarda dos direitos
humanos daquelas populações martirizadas esteve sempre presente na actuação,
não só conjunta mas também individual, dos militares envolvidos, dentro dos
apertados limites de segurança impostos face aos perigos e aos riscos que a missão
sempre envolveu. Este sentido de tolerância e de entreajuda humana, reconhecido
com especial ênfase pelas populações locais e seus representantes, foi um
instrumento essencial da capacidade de entrosamento na vida quotidiana das
pessoas com quem os nossos militares foram chamados a conviver e de garantia da
aceitação pacífica da própria presença militar portuguesa. A que acresceu um comportamento
irrepreensível de neutralidade face às forças étnicas e religiosas em presença,
sem pré-compreensões nem hostilização das diferentes partes, o que muitas vezes
exigiu aliar a capacidade operacional a uma intensa acção diplomática no
terreno, assumida directamente pelos comandantes da força e seu Estado-Maior,
com o inestimável apoio do aparelho diplomático português em Sarajevo e em
estreita articulação com os agentes das forças de segurança (GNR e PSP) que
desempenharam missões de garantia da ordem pública nas mesmas áreas.
… permitiu sublinhar
ainda o novo posicionamento de Portugal no Mundo que temos vindo a construir, e
que legitimamente aspiramos seja continuadamente ampliado…. …E demonstrámos
fazê-lo suportando custos financeiros de vulto, proporcionalmente até
superiores ao de outros parceiros da Aliança, com um empenhamento que mereceu o
reconhecimento generalizado, reconhecimento esse tanto mais gratificante quanto
assumido pelas próprias populações da Bósnia junto de quem actuamos,
independentemente da sua etnia e do seu próprio grau de aceitação e adesão ao processo
de paz desencadeado em Dayton. É minha convicção de que este específico
posicionamento de Portugal no Mundo contribuiu, de forma relevante, para o
largo apoio que foi dispensado à nossa candidatura a membro não-permanente do
Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 1997-1998…
… A opção veio a recair
numa unidade do Exército Português, o Batalhão da Brigada Aerotransportada
Independente, dotado de meios logísticos complementares e do apoio táctico de
um Grupo da Força Aérea Portuguesa, num total de perto de mil homens… … O
melindre da zona onde fomos chamados a actuar e os perigos inerentes ao tipo de
missões que foram confiadas ao nosso contingente aconselharam a escolher uma
força numerosa, com elevado poder de dissuasão e de resposta a eventuais agressões,
susceptível de garantir a sua autodefesa em situações de emergência durante um
período de tempo compaginável com a activação por reforço das demais forças de
apoio presentes na mesma área. Acresce que o Sector que nos foi confiado – e
que aceitámos – embora envolvendo uma enorme sensibilidade política e militar,
por corresponder a um corredor (de Gorazde) em que dois terços da sua extensão
se situavam na zona da República Srpska, bem perto de Pale e do Quartel-General
de um dos mais relevantes exércitos dos bósnios sérvios, integrava-se numa área
de actuação (a Zona Sudeste, com comando em Sarajevo) onde se concentravam as
Forças de vários países com quem temos diversas afinidades do ponto de vista político-militar
(italianos, espanhóis e franceses), com os quais se podia antever um mais fácil
entrosamento no terreno, designadamente por razões de melhor entendimento
linguístico e cultural.
Como sempre foi
afirmado, a força escolhida integrava exclusivamente militares dos Quadros Permanentes
e militares em regime de voluntariado e de contrato, tal como sucedeu com os
turnos de rendição que, aliás, foram definidos de acordo com os padrões NATO atendendo
ao elevado desgaste que a missão envolvia.
…o processo de decisão
política foi prosseguido em íntima articulação com os demais órgãos do Estado
com competências específicas no domínio da política externa e de defesa
nacional: o Presidente da República, a Assembleia da República (Comissões de Negócios
Estrangeiros e de Defesa Nacional), o Conselho Superior de Defesa Nacional e o
Conselho Superior Militar e os partidos políticos com representação
parlamentar, ao abrigo do Estatuto da Oposição. Creio que esta metodologia
permitiu um esclarecimento exaustivo das condicionantes da missão, a expressão
de inquebrantável solidariedade entre os vários órgãos de soberania e um
reforço substancial do sentido nacional das missões das Forças Armadas. Este
caldo de cultura, mesmo que aqui e além marcado por algumas divergências partidárias,
foi fundamental para a moral das forças no terreno, muito especialmente nos
momentos difíceis onde se registaram baixas na força, onde foi marcante o
sentimento de solidariedade de todos os quadrantes políticos em torno dos
militares envolvidos na missão e da respectiva cadeia de comando.
No plano organizativo,
a missão da IFOR foi de um inestimável valor quanto à análise das prioridades de
aprontamento e sustentação de uma força com as características daquela a quem
foi confiada a tarefa de integrar a missão da NATO na Bósnia-Herzegovina. Não
creio que seja nesta sede que se justifica elaborar detalhadamente sobre este tema,
mas sempre poderia adiantar que cumpre destacar as dificuldades recenseadas
quanto ao transporte de pessoas e de material (sentidas, aliás, em maior ou
menor grau, por todos os países participantes com a única excepção dos EUA), a
necessidade de montar uma cadeia de abastecimentos própria que atendesse às
especificidades nacionais (designadamente no tocante à alimentação), a inexperiência
na utilização de alguns equipamentos em ambiente natural particularmente rigoroso
(a neve e o frio intenso no Inverno, um calor tórrido e seco no Verão) e a
ausência de concepções doutrinais e mesmo de regras de empenhamento de forças
adequadas a estas missões de tipo novo e à circunstância de nelas confluírem
elementos tipicamente estruturantes de uma missão militar, tal como
classicamente a entendemos, e elementos mais próximos das funções de garantia e
manutenção da ordem pública e da segurança dos cidadãos, atribuídas por definição
a forças de tipo policial. Neste particular o historial (ainda por fazer) da
questão da perseguição e detenção dos criminosos de guerra é um inesgotável e
fecundo “case study” das dificuldades destas novas temáticas com que estaremos cada
vez mais confrontados.
Neste capítulo cumpre
reconhecer que, no plano da própria decisão política, acresceu ainda a necessidade
da progressiva adaptação da própria cadeia de comando e dos procedimentos de
articulação, ao mais alto nível, das competências legais do Estado-Maior
General das Forças Armadas e dos Estados-Maior dos Ramos envolvidos, o que, em
meu entender, aconselha a que em breve se proceda a uma alteração dessa
estrutura de cúpula em termos mais conformes com as necessidades deste tipo de
operações e da sua decerto inelutável futura natureza de emprego conjunto e
combinado de forças. Com efeito, o quadro legal vigente (a Lei de Defesa
Nacional e a Lei de Bases da Organização e Funcionamento das Forças Armadas)
mostra-se especioso na caracterização do modelo organizatório em situações de paz
e de guerra, mas carece de uma especificação mais rigorosa, em termos de
responsabilidades de aprontamento e de comando operacional de forças conjuntas
quanto às situações “intermédias” ou “de transição”, como as que se detectam
nas missões de paz com elevado grau de exposição das forças e de risco de
conflito violento.
Paralelamente foi
necessário colmatar algumas lacunas legislativas referentes ao regime jurídico
dos militares neste tipo de missões de natureza nova e essencialmente distinta
das situações de guerra. Com efeito, o quadro local pertinente era ainda o que
decorria da guerra colonial, mostrando-se em diversos aspectos desadequado às
missões de paz como a da Bósnia, pelo que foi necessário não só adoptar um conjunto
de medidas sobre o estatuto jurídico do pessoal envolvido na missão e sobre as
próprias condições remuneratórias, regime este que foi de igual modo estendido
aos demais militares portugueses envolvidos nas missões em Angola e no Sara
Ocidental. Do mesmo modo foi necessário complementar o regime de assistência e
protecção na doença e em caso de aquisição de deficiência ou de morte, neste particular
aferindo com ponderação as soluções à luz do regime aplicável na guerra
colonial e cujas sequelas ainda hoje se fazem sentir com acuidade na nossa
sociedade.
Um elemento muito
relevante do processo de decisão política e da sua subsequente implementação
foi o referente à política de informação e de comunicação. Tratou-se de um capítulo
particularmente complexo do processo de decisão, desde logo quanto à
explicitação, junto da opinião pública, das razões da própria decisão.
Atendendo ao protagonismo que neste capítulo me coube assumir, perdoarão que sobre
ele não me alongue em considerações. Sem embargo, a principal preocupação
observada foi a de compatibilizar a necessária informação sobre uma missão
militar de grande impacto junto dos meios de comunicação e consequentemente
junto da opinião pública em geral com a tradicional reserva da instituição
militar perante os escrutínios externos e os ditames de reserva e
confidencialidade ínsitos numa operação militar de grande envergadura onde
estão em jogo vidas humanas.
Considerando a ausência
de experiências antecedentes, creio ter sido possível definir uma política de “portas
abertas”, expressa numa preocupação de informação detalhada e de dispensa de
apoio logístico nas deslocações para e no teatro de operações aos
representantes dos meios de informação. O primeiro impacto desta política foi
particularmente difícil de gerir, reconheçamo-lo, desde logo, por ausência de
antecedentes próximos e consequente inexperiência do próprio nível de decisão
política, por menor adequação de diversos procedimentos rotineiros da
instituição militar e pelo que chamaria o “síndroma CNN” de muitos dos meios de
comunicação social na forma como abordaram a missão. Os primeiros tempos no
terreno representaram um verdadeiro “choque cultural” para a instituição
militar em geral e para os próprios militares envolvidos na missão, mas creio
que no geral foi um bom exemplo de “training in job” para todos os intervenientes,
tendo a cobertura noticiosa evoluído de uma certa busca de sensacionalismo para
uma apreciação mais objectiva das realidades da missão e dos seus fins políticos
últimos, tendo elevado significativamente o número de peças noticiosas sobre os
temasatinentes à Defesa Nacional e às Forças Armadas. Sem embargo, a dominância
noticiosa sobre a missão na Bósnia acabou por provocar algumas reacções nos
meios militares envolvidos noutros quadrantes, designadamente em Angola, pela
escassa visibilidade pública desta missão por contraponto ao contingente da
IFOR e depois da SFOR, situação que foi progressivamente alterada.
A globalização
comunicacional veio realçar um aspecto muito relevante da gestão deste tipo de
missões das nossas Forças Armadas: o desfasamento entre o “tempo da crise” e o
“tempo da instituição reagir” perante o “mundo em directo”, dramaticamente evidenciado
quando das infaustas ocorrências que provocaram as baixas que sofremos durante
a missão. Este circunstancialismo levou a alterar alguns procedimentos
informativos internos e externos quer da própria força quer da instituição
militar no seu conjunto e contribuiu para uma renovação da política de informação
na área da Defesa Nacional tendo em vista a necessidade de explicitar em
detalhe junto do grande público o significado das missões e os seus específicos
condicionalismos e para a afirmação da imagem pública das Forças Armadas,
elemento tanto mais relevante quanto se inicia um processo de transformação da
base de recrutamento da conscrição para o regime exclusivamente contratual.
Neste domínio creio ter desempenhado um papel relevante a prática seguida de
organizar “briefings”, em “close session”, promovidos pelo Instituto de Estudos
Estratégicos Internacionais com o apoio do Ministério da Defesa Nacional, onde
foi possível debater com os jornalistas os aspectos essenciais da missão e
mesmo alguns elementos de maior melindre e confidencialidade, com a participação
de responsáveis políticos e militares, respeitando regras de reserva na
utilização da informação assim disponibilizada que foi sempre uniformemente
observada por todos os participantes. Finalmente, no domínio da informação, o
Governo procedeu a uma permanente e cuidada monitoragem da evolução da opinião
pública sobre a missão. Esta contou sempre com um largo espectro de opiniões favoráveis
(entre os 50 por cento e os 70 por cento), excepto na semana em que ocorreram
as primeiras baixas mortais em Janeiro de 1996. De acordo com os inquéritos levados
a cabo nesse período, uma das razões determinantes para o grau de apoio à
missão foi precisamente o facto de ela se integrar numa força da NATO que, pela
sua credibilidade, reforçava o grau de confiança dos inquiridos na própria missão.
O contributo que a
responsabilidade assumida por Portugal nas missões da NATO na Bósnia-Herzegovina
deu à nossa imagem no Mundo repercutiu-se, ainda, no seio da própria Aliança,
revelando-nos como um país capaz de assumir as suas obrigações e, por isso, merecedor
do reconhecimento pelo seu empenhamento nas causas comuns… …Por isso, a margem
de negociação que nos conferiu a missão na Bósnia, no quadro da NATO, para a
redefinição da sua estrutura militar integrada, traduziu-se num resultado que,
respeitando as sequelas da plena integração da Espanha (a qual, aliás, sempre
apoiámos), salvaguardou integralmente os interesses nacionais e a projecção
específica do comando NATO sediado em Portugal, como Comando Regional da nova
estrutura da Aliança e com uma área de responsabilidade relevantíssima quer no
plano marítimo e aéreo como no terrestre… …Sem exageros nacionalistas, creio
que Portugal se pode orgulhar do contributo que deu para essa transformação (da
NATO). A única recompensa que esperamos, como portugueses, é a de que os nossos
filhos possam, daqui a cinquenta anos, continuar a celebrar esta data em paz! …»
Março de 1999 – João
Mira Gomes, diplomata no Ministério dos Negócios Estrangeiros em 1996.
“O Envolvimento Diplomático de Portugal na Bósnia-Herzegovina”, João Mira Gomes, então Director de Serviços da Política Externa e
de Segurança Comum do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Comunicação
apresentada no Seminário “Portugal e as Operações de Paz da Bósnia”, IDN, em 10, 11 e 12 de Março de 1999. Publicado
na revista Nação e Defesa n.º 92, Inverno 2000.
Por outro lado, a
credibilidade de um país na cena internacional é aferida não só por
declarações, mas acima de tudo por acções. A credibilidade da participação
portuguesa em operações de paz foi um dos argumentos que também pesou a favor
do sucesso da candidatura portuguesa ao CSNU.
A presença diplomática
portuguesa em Sarajevo, antecipando-nos, mesmo em relação a outros Aliados,
como por exemplo a Espanha, permitiu à máquina diplomática portuguesa ser
habilitada com informação em primeira mão sobre o desenrolar dos acontecimentos
e participar “in loco” no processo de elaboração das posições comuns dos Chefes
de Missão da U.E. sobre um determinado assunto. Convirá esclarecer que os relatórios
dos Chefes de Missão são, muitas vezes, o ponto de partida para a elaboração de
posições comuns da U.E. sobre uma determinada questão de política externa…»
Octávio de Cerqueira
Rocha, Chefe do
Estado-Maior do Exército em 1995/1996
“Portugal e as Operações de Paz na Bósnia – A Preparação das Forças”,
General Octávio de Cerqueira Rocha,
então na situação de Reforma. Comunicação apresentada no Seminário “Portugal e
as Operações de Paz da Bósnia”, IDN em 10,
11 e 12 de Março de 1999. Publicado na revista Nação e Defesa n.º 92,
Inverno 2000.
«…A preparação das
Forças do Exército para emprego na ex-Jugoslávia, iniciou-se em princípios de
1995 (Directiva de 17 de Fevereiro de 1995), na previsão inicial de uma participação
no apoio à retirada de forças da UNPROFOR, que não se concretizou e que veio a
confirmar-se na IFOR.
O confronto das características das duas áreas
de operações onde inicialmente se previa o emprego das nossas forças (região de
BIHAC ou região de Mostar), aconselhavam o emprego do Batalhão de Infantaria
Aerotransportado (BIAT) no sector de Mostar, em particular pelo Inverno menos
rigoroso, natureza do terreno e níveis esperados de intensidade dos conflitos…
...Porquê 1 BIAT/BAI e
não 1 Batalhão de Infantaria Mecanizada da Brigada Mecanizada Independente
(BIMec/BMI) ou 1 Batalhão de Infantaria Motorizada da Brigada Ligeira Independente
(BIMoto/BLI) ou um Comando de Brigada? Vários factores conduziram à decisão de
empregar, pelo menos numa 1ª Fase da Operação, 1 BIAT/BAI. Primeiro, os
Comandos de Brigada, já não estariam disponíveis, além de que em 1995/96 havia
mais dificuldades em estruturar as sub-unidades de um Comando de Brigada. Segundo,
o comando da Força no TO foi entregue ao Comando do ARRC (Força de Reacção
Rápida do Comando Aliado da EUROPA). A BAI estava já atribuída a esse comando,
com carácter permanente; justificava-se assim que um dos seus Batalhões fosse
atribuído ao comando a que pertencia. Não faria sentido que na primeira
intervenção “a sério“ do ARRC, não se observasse o compromisso assumido. Depois
porque, inicialmente, se admitiam dois tipos de possíveis missões – de quadrícula,
ocupando o terreno (como veio a concretizar-se), ou como reserva do Comando da
Força (ARRC). A natureza e as capacidades de uma unidade de Infantaria
Aerotransportada, tornam-na particularmente apta para essa tarefa numa situação
operacional como a que se desenhava para a BiH. Em quarto lugar, a BAI,
levantada no Exército a partir de 1 de Janeiro de 1994, pela integração das
tropas Paraquedistas até então na Força Aérea, e do Regimento de Comandos, dava
garantias de eficácia e prontidão operacionais, numa situação caracterizada por
muitas incertezas e curto prazo disponível para o aprontamento da Força. As
tropas Paraquedistas, como as tropas Comando, eram e são detentoras de elevados
padrões de prontidão e eficácia operacional e das melhores tradições militares.
Acentua-se, em particular, o facto dos efectivos da BAI serem na totalidade
voluntários RV/RC, (duas vezes Voluntários), situação que, como se sabe vinha a
ser seguida para missões em África e que passou a constituir doutrina a partir
de Março de 1996, por decisão do Governo...
…Não se duvida que os
Batalhões de Infantaria (BI) da BMI, cumpririam também com eficácia essas
missões. No entanto, nessa altura, o número de RV/RC de que dispunham era mais
limitado do que na BAI e, a sua dispersão por elevado número das Unidades da
BMI, ainda dificultaria mais o aprontamento de 1 BI para a BiH. Posteriormente,
a situação em efectivos RV/RC melhorou e foi possível que a BMI, como iremos
relembrar, pudesse vir a aprontar Forças para o TO da BiH).
Refira-se ainda que inicialmente
terá sido considerado o emprego da AMF (Land) – Componente Terrestre da Força Móvel
do ACE – constituída por Batalhões com elevada mobilidade e prontidão
operacional, primeiro escalão de intervenção nas situações de conflito. A confirmar-se
tal hipótese, o BIAT seria também a unidade mais adequada a tal tipo de Forças.
Finalmente, poderá ainda dizer-se que os custos de preparação e aprontamento de
um BIMec/BMI eram consideravelmente superiores e o prazo de preparação também
era maior. A decisão recaiu assim num BIAT/BAI – o 2º BIAT....
…O Contingente do
Exército foi estruturado em 3 elementos, com efectivos totais de 924 militares:
o 2º BIAT com 678, o Destacamento de Ligação com 21 e o Destacamento de Apoio
de Serviços com 225. O contingente incluía 1 Destacamento de Engenharia com
capacidade de detecção minas e armadilhas e trabalhos de engenharia, e dispunha
do apoio de 1 Destacamento Avançado de Controlo Aerotáctico da Força Aérea para
a coordenação de fogos aéreos.
.... a manobra de
transportes, refere-se que foram transportados para um TO afastado da Base
Logística Nacional (PO) cerca de 2500 Km (4 horas TAP e 6 horas C-130 e 10 dias
via marítima)por via aérea, cerca de 1000 homens e por via marítima cerca de
200 viaturas (25 blindadas), 117 atrelados e 163 contentores. Ulteriormente,
nas operações de sustentação logística, recorreu-se à via terrestre com a
utilização de TIR a uma distância de 3500 Km…
Como a missão impunha a
ocupação de três pontos de apoio na proximidade de Gorazde, o 2º BIAT inicialmente
ocupou Rogatica-Ustripaca-Kukavive-Vitkovice (enclave de Gorazde). Este
dispositivo foi muito condicionado pela disponibilidade das instalações
alugadas…
…De acordo com as
recomendações da NATO, a rendição das forças foi planeada para quatro meses, a
das unidades de combate e para seis meses, a das unidades de apoio logístico. Foram
definidas “Normas de Nomeação e de Administração de Pessoal Militar que integra
Missões de Paz e Humanitárias“. Por Portaria conjunta dos Ministros da Defesa Nacional,
Negócios Estrangeiros e Finanças, foram definidas as remunerações e outros
direitos do pessoal militar na BiH. A partir do empenhamento do 3.º BIAT, o
Exército, através do Comando do Corpo de Tropas Aerotransportadas (CTAT),
estabeleceu um acordo com uma “seguradora”, para criar um seguro de vida
individual, iniciativa original relativamente ao empenhamento de forças no
exterior, que contribuiu para o moral das tropas e se revelou adequado à
situação. Embora o encargo fosse a título pessoal, o processo foi iniciado na perspectiva
de mais tarde vir a ser institucionalizado...
… Até final da IFOR as
perdas das nossas forças foram de 4 mortos e 17 feridos.
...A participação
militar portuguesa na IFOR/SFOR, que prossegue, teve características especiais
que se julga de interesse sublinhar.
Em termos nacionais,
traduziu-se no emprego das primeiras unidades a actuar no TO Europeu após a
Primeira Guerra Mundial e as primeiras unidades de combate a intervir, no
exterior, após 1975.
Em termos
internacionais, tratou-se de uma intervenção militar sob a égide das Nações
Unidas, mas executada sob comando NATO, fora das suas fronteiras originais e
que contou com a participação de forças de Países NATO e não NATO, o que demonstra
a importância da cooperação militar no âmbito das relações internacionais e
aconselha a estreitar essa cooperação.
A presença alargada de
Quadros Nacionais nos QG internacionais e outras estruturas operacionais é um
encargo com contrapartida. Essa presença aumentou consideravelmente, mas
julga-se estar ainda aquém no QG/NATO (SHAPE).
Hoje afigura-se claro o
propósito do poder político de assumir os compromissos internacionais, através
de uma presença militar efectiva, que se concretizou nos últimos seis anos com
um carácter permanente em diversas áreas do Globo, na prevenção de conflitos, resolução
de crises e segurança de cidadãos nacionais.
Parece ter sido
acolhida a natureza simultaneamente nacional e supra nacional da Política de
Defesa que o Professor Adriano Moreira designou por “soberania de serviço”,
conceito que corresponde à “disponibilidade para contribuir para objectivos
comuns e que a única legitimidade é a do exercício e que os únicos contributos
reconhecidos são os contributos efectivos, activos”. Isso exige, como se sabe,
disponibilidade de recursos e de meios militares, em permanência e com
capacidade para cumprir um diversificado leque de missões, com duração
prolongada e de exigente sustentação. Acresce, como aliás se tem verificado, o
emprego simultâneo, em diversas frentes, de unidades das Forças Terrestres. Isto
exige que o Sistema de Forças Operacional esteja preenchido e seja efectivamente
operacional. O decisor político terá de saber, antes de decidir uma
participação militar, quais as forças disponíveis e capacidade de sustentação,
incluindo rendições, apoios e reforços. A alternativa existe: o decisor
político define prioridades e níveis das intervenções, ou seja, define para que
missões simultâneas o Sistema de Forças deverá ter capacidade imediata (os
prazos de intervenção são em regra muito curtos), o que poderá determinar a não
participação em todas as operações multinacionais.
A disponibilidade e
generosidade Portuguesas e particularmente da Instituição Militar, são uma
realidade, resolvem muitos problemas, mas julga-se estarmos no limite além do qual
a segurança e o sucesso das intervenções podem ficar comprometidos…
…Se a prioridade for,
como se julga adequado, atribuída às “novas missões”, sem contudo se esquecer
ou perder de vista a missão principal de defesa militar do País, então os
conceitos estratégicos e o planeamento de forças devem reflectir essa
prioridade. Contudo, a preparação das forças deverá continuar a privilegiar o
combate terrestre, que se ajusta a vários tipos de tarefas operacionais, evitando
uma formação de cariz mais policial do que militar. Mesmo nas operações de paz,
existe uma fronteira clara entre os dois tipos de forças.
Julga-se que a
principal vulnerabilidade, que se considera absolutamente prioritário melhorar
rapidamente, diz respeito aos recursos humanos, particularmente o recrutamento
de voluntários (RV/RC) para o Exército.
Hoje temos experiência,
capacidades diversificadas para participar em operações de forças
multinacionais e na Cooperação com os Países Lusófonos, mas esta
disponibilidade pode vir, a curto prazo, a ficar comprometida por insuficiência
de efectivos. No último biénio, o Exército “perdeu” cerca de 1.600 RV/RC, a
maioria com experiência de missões no exterior. Como em 1997, continua-se a
julgar prioritária a resolução desse problema nuclear, através de nova LSM que
tarda em ser aprovada, e de novos incentivos.
Mas outras ilações
importantes poderão ser retiradas da experiência da participação de onze
unidades em operações de paz com um efectivo de 5.500 homens:
– que foram correctas e
adequadas as acções de restruturação e de alguma modernização do Exército, em
especial da sua componente operacional, levadas a efeito nos últimos anos;
– a indispensabilidade
de prosseguir os programas de reequipamento no âmbito da LPM, cujos atrasos de
execução foram altamente inconvenientes;
– a adequabilidade da
doutrina relativa às operações de paz criada a partir das experiências
acumuladas e introduzida no Exército; sublinha- se a importância do Centro de
Instrução de Operações de Apoio à Paz no Campo Militar de Santa Margarida,
criado no Verão de 95;
– a necessidade de
garantir a prontidão operacional das Forças, sua projecção e sustentação
logística, com meios dos três Ramos das Forças Armadas, a partir de uma capacidade
logística própria, que assegure a procura e obtenção, a produção ou a adaptação
de equipamentos críticos, essencialmente militares, em prazos normalmente reduzidos.
Sempre se advogou, e a operação IFOR veio reforçar essa posição, a imperiosa
necessidade de se reduzir uma das nossas principais vulnerabilidades que é a
falta de meios para projectar e sustentar Forças no exterior: um Navio
Logístico e mais aviões C-130;
– a conveniência de
reformular o edifício conceptual da Defesa Nacional e Forças Armadas, o que
será certamente incentivado pela esperada actualização do novo conceito estratégico
da NATO, embora pareça que não são necessárias grandes alterações. As
vulnerabilidades que persistem não estão no quadro conceptual de referência,
mas em especial na não concretização da reforma da LSM e atrasos na execução da
LPM.
Afigura-se também
pertinente reanalisar as linhas de comando operacional e
administrativo-logístico das chefias militares, no sentido de avaliar a solução
que melhor responde às diferentes situações, aquém do estado de guerra.
A forma como decorreu a
Missão da IFOR é conhecida. O 2º BIAT, o Destacamento de Apoio de Serviços e o
Destacamento de Ligação, unidades que iniciaram a missão tiveram, deve sublinhar-se,
tarefa árdua a exigir grande sacrifício e profissionalismo de todos os seus
militares. As dificuldades iniciais próprias da entrada em sector num teatro de
operações à época caracterizado por condições meteorológicas gravosas, inexistência
de instalações minimamente habitáveis, pela imprevisibilidade e existência de
riscos decorrentes quer da proliferação de minas e engenhos explosivos e
acidentes de viação, quer da incerteza quanto ao nível de conflitualidade,
foram ultrapassadas pela inexcedível perseverança e grande generosidade de
todos os militares, unidos por são espírito de corpo.
O 3º BIAT soube,
depois, aproveitar da melhor forma o trabalho e a experiência do 2º BIAT, dando
continuidade e unidade ao cumprimento da missão atribuída às forças portuguesas
que se integraram harmoniosa e plenamente no esforço operacional conjunto da
Divisão Multinacional Sudeste – sob comando Francês – e da Brigada
Multinacional Italiana que enquadraram a força nacional.
A missão IFOR,
terminada em 20 de Dezembro de 1996, foi continuada na SFOR, com o emprego de
forças da BMI – dois BIMoto Reduzidos. Estas unidades prosseguiram o caminho
dos que os antecederam, e cumpriram com igual sucesso, eficácia e
profissionalismo as suas complexas tarefas. Tanto a BAI como a BMI mostraram
ser excelentes unidades operacionais que se prestigiaram e prestigiaram o
Exército, as Forças Armadas e o País.»
Torres Vedras, 14JAN2021, Miguel Silva Machado
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