OS PARAQUEDISTAS NO DIA DO EXÉRCITO 2020
Os paraquedistas militares portugueses sentem-se por estes
dias com um sentimento entre o perplexo e o revoltado! Não só os que estão no
activo, mas também os que um dia conquistaram o direito de usar a boina verde.
Ver o Comando do Exército impor o uso de uma boina que não a
verde a quem se mantém qualificado, aos que continuam a efectuar saltos em
paraquedas, é daquelas coisas que nunca se julgou possível acontecer! Era mais
fácil adivinhar que vinha aí uma Pandemia!
A desmotivação que estas ordens causaram – e outras ligadas
às boinas – é notória, militares no activo até já vêm para as redes sociais
manifestar isso e muitos outros em conversas e mensagens particulares também o
fazem. E aqui sem meias medidas, dizendo o que pensam da situação, forte e
feio. Mas a disciplina militar ainda tem as suas armas e é necessário manter as
aparências para evitar represálias, a verdade inconveniente não é apreciada
pela hierarquia. Nunca foi, isso não é de agora.
Com muita frequência todas as culpas são atiradas “para o
Exército”, ou para “os Generais”, especialmente por quem nunca conheceu ou o
conheceu mal o ramo terreste. São acusações simplistas, talvez seja melhor
olhar determinados factos que me proponho lembrar.
Fique claro, fui voluntário para os paraquedistas em 1980,
entre outras coisas porque não queria ir para o Exército. Em 1993 quando fomos
compulsivamente transferidos em bloco da Força Aérea para o Exército, fui um
dos poucos que tentamos evitar isso pelas vias legais. Foi-nos negado pela
Força Aérea a permanência no ramo em cumprimento da decisão política
irreversível.
Servi no Exército durante 12 anos com momentos bons e maus,
como sempre acontece, e desde então, além do que conheci, tenho tentado
interpretar muitas das atitudes e decisões que ora são (do ponto de vista de um
paraquedista da Força Aérea) lógicas, aceitáveis ou mesmo boas e as que ao
contrário são inadmissíveis, aparentemente até vingativas.
Não pretendo fazer uma avaliação global do ramo terrestre,
antes dar alguns exemplos por vezes esquecidos para provar que o problema não é
“o Exército” instituição mas sim quem transitoriamente ali exerce o poder e
pode, no limite, causar danos irreparáveis nos Paraquedistas que servem Portugal
como poucos, na guerra e na paz desde 1955.
O momento presente ilustra bem o que um oficial general do
Exército identificava mais tarde, sobre o que viveu nos anos 50 do século XX, “o
dilema das massas indiferenciadas e as elites apuradas”. Ou seja, os
que no Exército de então defendiam que este devia ser um corpo único com
formação e recompensas semelhantes e os que diziam que devia haver núcleos com
melhor formação que a generalidade e recompensas adequadas. E nestas
recompensas também se incluíam uma simbologia diferente, que distinguisse, e
assim nasceu a primeira boina nas Forças Armadas Portuguesas, a verde. Sempre
houve defensores das duas teses no Exército. Mais tarde a guerra obrigou o
Exército a criar e manter forças especiais.
E quem assim reflectia? Kaúlza de Arriaga. Oficial da Arma de
Engenharia do Exército, como o actual Chefe de Estado-Maior do Exército, José
Nunes da Fonseca que está a tomar estas medidas gravosas.
Kaúlza subiu todos os degraus da hierarquia até chegar ao que
agora se chamaria Tenente-General e teve comando de tropas como hoje seria
impossível. Comandou as Forças Armadas Portuguesa em Moçambique, em tempo de
guerra, um efectivo de cerca de 50.000 militares dos três ramos e várias
unidades de recrutamento local (qualquer coisa como 4 vezes o Exército
Português actual e quase o 2 vezes as Forças Armadas Portuguesas de hoje). Foi
o grande impulsionador da Força Aérea e das Tropas Paraquedistas nos finais dos
anos 50 e início dos 60 do século XX.
Desempenhou cargos de confiança política desde cedo – no
fundo hoje isso também acontece e é muito criticado, a maioria dos oficiais
generais da actualidade serviram nos gabinetes ministeriais ou dos chefes militares
– e cumpriu com distinção entre os seus pares para integrar o corpo de oficiais
generais.
Mas também outro oficial general do Exército, este oriundo da
Arma de Infantaria, nome menos falado mas – na minha opinião – o decisivo para
a integração das Tropas Paraquedistas na Força Aérea em 1955, Fernando dos
Santos Costa.
Fez a sua carreira no Exército até desempenhar funções
governativas de Capitão a Coronel, sempre ligado ao Exército e às Forças
Armadas. Mais ainda do que Kaúlza foi um verdadeiro “militar político” (o que
hoje muitos criticam!), da confiança do Presidente do Conselho de Ministros, António
de Oliveira Salazar. Como general também desempenhou cargos militares, por
exemplo Director do Instituto de Altos Estudos Militares. Santos Costa
distinguiu-se sobretudo pela sua capacidade para reorganizar as Forças Armadas,
quer no período da 2.ª Guerra Mundial quer depois para as adaptar aos padrões NATO.
Era Ministro da Defesa acumulando com Ministro do Exército, com posto de
Brigadeiro (Major-General), quando o Batalhão de Caçadores Paraquedistas (BCP)
foi criado e inserido na Força Aérea por sua vontade.
O BCP foi criado por oficiais, sargentos e praças do Exército
na sua quase totalidade. Os oficiais que o comandaram foram sempre oficiais do
Exército, bem assim como os das unidades que se seguiram. A esmagadora maioria
dos “nomes sonantes” das Tropas Paraquedistas foram formados no Exército e só
depois rumaram a Tancos, voltando ao ramo para fazer os cursos que lhes permitia
progredir na carreira.
Na Guerra do Ultramar a inserção na Força Aérea aprofundou-se,
as unidades paraquedistas eram muitas vezes empregues em operações autónomas do
ramo, o uso dos meios aéreos facilitava esta interacção, mas não raras vezes
também actuavam com forças terrestres, ou mesmo sob o seu comando, e também com
as unidades de intervenção da Marinha, os Fuzileiros Especiais. Nos locais onde
a guerra contra-subversiva esteve mais aperfeiçoada, lá estavam os
paraquedistas e os meios aéreos como uma “unidade”.
O soldado paraquedista, combatente, atingiu em África o seu
ponto mais alto. Era legitimamente olhado por todos como um combatente
excepcional. Vem sobretudo daqui, desta guerra e do que era necessário fazer
para o formar, o valor do soldado paraquedista português.
Em Tancos tinha-se criado uma mística própria, indestrutível,
mas que ia ser posta à prova até ao limite no período político-militar
decorrente do 25 de Abril de 1974.
Ultrapassado o PREC (1974/75) “em estado de coma”, os
paraquedistas com o apoio da Força Aérea conseguiram reerguer-se. Sempre
comandados por oficiais formados no Exército, com os restantes paraquedistas já
com origem na “Casa-Mãe”, oficias, sargentos e praças.
Foi o tempo do Corpo de Tropas Paraquedistas (1976-1993), sem
dúvida uma das organizações militares mais aperfeiçoadas que Portugal conheceu.
No início deste período aos quadros do CTP e da Brigada de Paraquedistas
Ligeira, sobrava experiência da guerra mas faltaram depois as missões
expedicionárias. A cooperação internacional desenvolveu-se como nunca, foi
possível encetar alguma modernização do armamento e equipamento, mas o Portugal
político-partidário continuava traumatizado pela Guerra do Ultramar e evitava
empenhar-nos nas missões expedicionárias que os nossos congéneres realizavam.
Pode-se hoje constatar, foi um tempo em que os paraquedistas
ficaram sub-aproveitados por ausência de decisões políticas, e mesmo sem
paralelo em Portugal, atrasaram-se em relação a forças congéneres na Europa,
por ausência de empenhamento operacional.
Ainda assim foi graças ao CTP – e para muitos esse foi o
principal motivo da mudança de ramo – que Portugal conseguiu garantir o efectivo
necessário à sua ambição, para se empenhar nas missões de apoio à paz e
humanitárias com unidades de combate.
Em 1996 os paraquedistas, no Exército, iniciaram a
participação nas missões expedicionárias nas quais já milhares de boinas verdes
participaram. Da Bósnia a Timor, do Iraque ao Afeganistão, do Kosovo ao Mali e
à República Centro Africana, estando entre os primeiros a partir ou os que
suportaram o maior esforço, garantindo em quantidade e qualidade o factor
humano nestes teatros de operações. Nos
últimos anos na RCA, as sucessivas acções de combate vieram mostrar sem a
mínima dúvida o seu valor, a sua competência operacional. Havia quem
maldosamente ou por mera ignorância teimasse em desvalorizar os paraquedistas
de hoje. Enganaram-se redondamente. Mesmo que inicialmente dotados com
equipamento e armamento longe do ideal, enfrentaram sempre o inimigo com
sucesso.
Hoje, aproximando-se o 25.º aniversário da triste cerimónia
de 30 de Dezembro de 1993, a quase totalidade dos efectivos paraquedistas –
menos uns 20 oficiais e sargentos – só serviram já no Exército.
Então será indiferente o Ramo a que pertencem? Podia ser…
A grande diferença entre estarem inseridos num ou no outro
tem um nome: autonomia.
Enquanto na Força Aérea os oficiais do Exército que
comandavam os paraquedistas tinham uma enorme autonomia, até direi mais, tinham
liberdade, no Exército isso perdeu-se em parte logo em 1994 e agravou-se
exponencialmente em 2006 com a chamada “transformação do Exército” e a criação
da Brigada de Reacção Rápida pela mão de um outro General CEME, também oriundo
da Arma de Engenharia, Luís Valença Pinto.
A natureza da Força Aérea, naturalmente virada para a
actividade aérea, atribuía recursos, sempre escassos diga-se, mas criou o
ambiente adequado porque interferia pouco na sua actividade, permitindo o desenvolvimento
deste corpo de tropas como nenhum outro em Portugal. Por isso o Exército o
desejou sempre integrar – recordo o General Cerqueira Rocha, CEME, oriundo da
Arma de Infantaria, em 30DEZ1993, sobre os paraquedistas da Força Aérea: “eram há
muito desejados no Exército.”
Note-se que alguns no ramo terrestre (ou muitos, nunca
saberemos) esperavam e acreditavam genuinamente que os Paraquedistas e a
Aviação Ligeira seriam o “gatilho” para tirar o Exército do atraso e imobilismo
em que se encontrava desde o final da Guerra do Ultramar. Os helicópteros nunca
chegaram, era preciso levantar de raiz a unidade, mas os paraquedistas
chegaram, foram logo empenhados na Bósnia e isso sim iniciaram uma nova época
no Exército. Outras unidades se seguiram, o Exército alcançou assim
gradualmente novas competências, alguma modernidade que lhe vinha escapando.
No Exército o que se tem visto desde 1994 – ao contrário do
que politicamente foi garantido para justificar a transferência – é uma
gradual, persistente e nefasta limitação da autonomia dos paraquedistas. No
Exército por vezes parece mesmo que toda a gente sabe “como devem ser” os
paraquedistas…menos os paraquedistas! Da gestão do pessoal ao emprego
operacional passando pelas aquisições de novos armamentos e equipamentos.
O episódio das boinas pretas é o culminar da aplicação desta
vontade uniformizadora, o chamado “nivelar por baixo”, mentalidade que Kaúlza
de Arriaga tão bem definiu e que em 1955 levou Santos Costa a evitar colocar a
recém-nascida unidade no Exército.
Para os paraquedistas é dramático que o Exército esteja em
2020 dominado por esta mentalidade “niveladora”. O Exército terá que mudar para
melhor!
Igualmente dramático, e aqui não é só para os paraquedistas, a
ausência no patamar político de governantes conhecedores da “coisa militar”
para perceberem o que está em causa, como nos anos 50!
Como em outras horas negras da sua história, e numa altura em
que os efectivos dos pára-quedistas caminham rapidamente para números
“regimentais” só posso desejar que aos oficiais do Exército que comandam e
venham a comandar os paraquedistas nestes tempos ingratos não falte o
sangue-frio e a inteligência. Portugal precisa dos paraquedistas, o seu
empenhamento em todo o espectro de missões reais que têm sido acometidas pelos
sucessivos governos ao Exército, isso provam.
Para o “chão sagrado” de Tancos continuar a gerar
paraquedistas, o Exército tem que permitir que se mantenham os elementos
essenciais da sua identidade. A boina
verde é um dos principais.
Miguel Silva Machado,
24OUT2020
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